Palavras que passaram

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Farto

Indecisões. Complicações. Dificuldades. Agravamentos. Impedimentos. Dramas. Estava farto. Injuriara-o pela última vez. Se, dantes, tudo aguentara com o seu tímido sorriso, agora não mais abriria a boca. Desistira. Tinha lutado pela última vez contra a sombra que os cobria. A areia nos seus olhos pesava, fruto de todos esses encontros agridoces, em que o nó que os unia nem mais se atava, nem desatava. Desta vez estava farto. A espada que o acompanhara durante esta jornada encontrava-se a seus pés, estilhaçada pelo peso de um mundo que insistira em separá-los. Era-lhe, agora, indiferente. Subiria para o seu velho cavalo cansado e rumaria em direcção àquele elusivo horizonte, cujas promessas de paz lhe dariam a força que perdera para cortar com este passado, em que agora vivia.

domingo, 22 de maio de 2011

Sussurro

A demanda por amor movia-o. Como um leão perseguindo a sua presa, ele nunca desistiria. Dar-lhe-ia este mundo e o que mais houvesse, se dela conseguisse um sorriso...O seu coração ardia e o gelo que insistia em cobri-lo derretia, queixando-se em vapor. Ficara nu para o mundo. Que o julgassem, de nada lhe importava! Sabia que o amor que o guiava era o mais puro, tão puro quanto a inocência que o acompanhara durante a meninice. Sabia que a amaria. Sabia, também, por sussurro do destino, que as suas vidas se fundiriam numa única tela, criando a mais bela obra que dois seres podem partilhar. Não tinha dúvidas, era a mulher da sua vida. O seu futuro era seu, não lhe restavam dúvidas, destruídas pelas suas certezas, jurava ele, divinas...! Apenas um algo atrasava o cumprimento de destino, escrito quando o mundo era jovem...Encontrar esta mulher mistério, que apenas a sua essência reconheceria...

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A saga do esquecido (pt. 3)

"Em que o posso ajudar?"

Perguntou-lhe com uma breve incerteza, perpetuada por um profundo receio. Receio desconhecido, infundado, certamente imaginado...Até se materializar no som da resposta do seu interlocutor...

"Pode sim, meu jovem amo."

Perplexo, ainda que não tanto quanto desconfiado, olhou o possível chanfrado de alto a baixo e arriscou:

"Amo? Hum...ainda não tenho um império, mas...tudo bem. Desde que não tenha que pagar..."

O estranho soltou uma gargalhada.

"Vejo que o sentido de humor é de família..."

"Não me parece...É que os meus pais não reconhecem uma boa piada. São cristãos, sabe..."

"O meu amo não acredita em Deus?"

"Digamos que...não."

"Estranho...Era suposto a sua família guardiã incutir-lhe os valores do nosso egrégio Senhor..."

"Bem, não sei o que acabou de dizer, caro senhor, mas é certo que em minha casa nunca faltou Júlio Iglesias...E que estória é essa de família guardiã?"


segunda-feira, 9 de maio de 2011

Nada mais a dizer

Se houvesse algo mais a dizer, ele di-lo-ia. Nunca deixara as suas palavras presas. Aliás, era um grande adepto de abrir a porta e mantê-la aberta para que todas as palavras que quisessem sair, o pudessem fazer e visitar esse mundo, fora da mente que as vira nascer. Não. Tinha dito tudo quanto precisara, tudo quanto se lembrara, tudo quanto lhe importara. Caminhava agora, perdido algures por entre umas ruas cujos nomes não lhe inspiravam um convite de permanência na sua mente. De tudo quanto acabara de se passar, apenas um detalhe lhe importava. Somente, a quantidade de espectadores que acabavam de presenciar o seu tão único e sentido discurso sobre algo de que já não se lembrava. Quem seriam, que fariam, que rumo teriam as suas vidas tomado, de forma a permitir-lhes presenciar tamanha demonstração de arrogante sobranceria...E o orgulho invadiu-o. Esse velho amigo, que se mantivera uma das poucas constantes na sua vida, acabara por lhe custar muito mais do que alguma vez ele tivera, mas...nunca lhe conseguira dizer que não. Sentia-se como se Deus, o único ser acima de si próprio, apenas porque a sua existência nunca havia sido provada, decidira conceber um Seu semelhante...Nove meses antes de ele nascer. Assim passara toda a viagem de regresso, até parar em frente à sua esplanada predilecta. "Só um copo.", pensou ele, tentando enganar a sua própria mente. Enfim, na hora de se tomar uma decisão, o álcool teria um maior peso do que qualquer moral que o pudesse guiar. Ele preferia-o, pois, que culpa de uma escolha errada se lhe poderia associar, quando, apenas, seguira ordens? Relembrando tudo o que viveu nesse teatro matutino, deu um trago no seu whiskey velho, talvez tão velho quanto ele, se se perguntasse a um qualquer entendido e, pela primeira vez em muito tempo...Encontrou algo, invulgarmente, semelhante a contentamento.

sábado, 7 de maio de 2011

Perda

O seu caixão estava pronto. Pelo menos, era o  ominoso sentir que o acompanhava nesta bizarra jornada, que ao começar tão tarde assim,  tornara-se a que o invadia com as sensações e os pensamentos mais avassaladores que alguma vez sentira. "Cada vez mais, aproxima-se o momento em que terás que abandonar esta forma", lembrava-lhe o vento, a única força externa a si que não conspirava contra ele. Por mais que ele lutasse contra as trevas que dançavam à sua volta, todo o universo sabia que nem forma de adiar o inevitável havia.  De nada lhe adiantava querer estar com ela, a vida interferiria sempre e a sua estava já no fim. Tinha pena. Na sua mente, a raiva batalhava sozinha contra o desespero, o medo, a tristeza, a mágoa, o sentimento de perda profunda, a incapacidade de mudar a sua sorte...E começava a perder. Esta raiva, composta por tudo quanto tinha potencial para, um dia, se tornar felicidade, era a sua última esperança contra o escuro, que lhe apodreceria o coração e o mataria, com uma lentidão invulgar, digna, talvez, de alguém que nunca teve oportunidade de o conhecer, realmente.